18 jul 2024
Entenda como um projeto em cooperação com a África do Sul está ajudando a melhorar o SUS em Florianópolis
Nesta História de Mudança, trazemos o histórico e o desenvolvimento de uma parceria de sucesso entre a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Florianópolis (SC) e a Knowledge Translation Unit da University of Cape Town para a adaptação e implementação do Programa PACK, que busca qualificar a tomada de decisões de profissionais médicos e enfermeiros da Atenção Primária à Saúde (APS) com base nas melhores evidências disponíveis.
Os desafios locais na Atenção Primária à Saúde
Esta história tem início em 2013, quando o Departamento de Atenção Primária da SMS Florianópolis, diante da necessidade de fortalecer a APS local, promoveu um fórum que reuniu trabalhadores da APS e da gestão, para compartilhar boas práticas e planejar iniciativas para a melhoria da APS, dentre elas estava a primeira versão da Carteira de Serviços de Atenção Primária. O documento lista os serviços essenciais que devem ser oferecidos pela APS, além de orientar a gestão de recursos humanos.
Essa iniciativa estava alinhada a uma reforma qualitativa mais ampla da APS, que já vinha buscando qualificar o atendimento com o aumento da proporção de profissionais médicos especialistas na área – os Médicos de Família e de Comunidade, além da qualificação da equipe de enfermagem voltada para o trabalho clínico e práticas avançadas de enfermagem na APS.
Em meados de 2015, a equipe da SMS de Florianópolis observou alguns problemas de relevância no sistema de APS local. Dentre os quais, foi apontada a heterogeneidade na oferta de serviços prestados e a necessidade então de uma padronização desta oferta de cuidados. Nesse sentido, começou-se a debater a urgência na produção de protocolos e ferramentas efetivas e eficazes para a qualificação clínica de profissionais de saúde na APS, com base nas melhores evidências disponíveis.
O que é o programa PACK?
O programa PACK – Kit de Abordagem Prática aos Cuidados (do inglês, Practical Approach to Care Kit) é uma estratégia de fortalecimento dos sistemas de saúde desenvolvida a partir de 1999 na África do Sul pela Unidade de Tradução de Conhecimento (Knowledge Translation Unit – KTU), do Instituto do Pulmão da Universidade da Cidade do Cabo (University of Cape Town Lung Institute).
O PACK é composto, entre outros, por uma ferramenta de apoio à decisão clínica, o “guia PACK”, e uma estratégia de implementação baseada em evidências. O guia oferece uma abordagem para mais de 40 sintomas comuns e mais de 20 condições crônicas em adultos que se apresentam comumente na APS e se destaca pela fácil usabilidade, utilizando algoritmos e listas de verificação que apoiam a tomada de decisões clínicas.
Hoje, o PACK é uma ferramenta point-of-care (ponto de atendimento) voltada ao uso durante a avaliação e manejo do paciente na APS, a partir de evidências científicas robustas e alinhadas a protocolos nacionais e internacionais. Além de guias, o Programa PACK engloba uma estratégia de treinamento para as(os) profissionais de saúde da APS. A ferramenta já foi adaptada para implementação na África do Sul, Brasil, Indonésia, Nigéria e Etiópia.
Qualificação da Atenção Primária à Saúde em Florianópolis
Em 2015, ao pesquisar mais sobre os algoritmos e o trabalho desenvolvido pela Knowledge Translation Unit da Universidade do Cabo, a equipe da SMS de Florianópolis soube que o programa estava buscando uma parceria no Brasil, selecionando uma instituição para fazer um acordo de colaboração com a intenção de replicar o projeto em uma região com desafios semelhantes, em outro país em desenvolvimento.
Após apresentação de uma proposta de transferência de conhecimento para a melhoria da APS em Florianópolis, a parceria se concretizou com a SMS de Florianópolis, com o objetivo de trazer as experiências positivas geradas pelo PACK para o Brasil, inicialmente a nível municipal. Essa implementação contou com o apoio da Comissão de Sistematização da Assistência de Enfermagem (CSAE) de Florianópolis, que neste momento estava avançando na implantação dos Protocolos de Enfermagem, que norteiam a clínica ampliada de enfermeiras(os), de maneira pioneira no país.
A intervenção e o processo de adaptação local
O PACK foi desenvolvido a partir de quatro pilares, que devem ser replicados no momento de localização por outros municípios: o Guia PACK; o programa de treinamento para profissionais de saúde; as medidas de fortalecimento do sistema de saúde; e as ferramentas de monitoramento, avaliação e pesquisa.
Além disso, os guias implementados na África do Sul foram adaptados à linguagem e à realidade de saúde do município de Florianópolis, bem como do SUS, uma vez que as práticas e desafios são diferentes entre as duas localidades. A localização garante, portanto, que o conteúdo clínico reflita diretrizes locais, políticas, recursos e habilidades dos trabalhadores de saúde, assim como prevê atualizações regulares com base nas evidências e feedback de partes interessadas.
A primeira edição do guia PACK Brasil Adulto: versão Florianópolis foi lançada em 2016, com atualizações em 2017, 2018 e 2020 baseadas nas mais recentes evidências científicas, protocolos clínicos nacionais e internacionais, assim como na experiência/feedback dos treinadores locais, especialistas, gestores e demais profissionais da Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis.
Ele compreende uma ferramenta de apoio à decisão clínica que abrange os sintomas e condições mais comuns de pacientes adultos da APS, com conteúdos sobre doenças transmissíveis, não transmissíveis, problemas de saúde mental, saúde da mulher e cuidados paliativos.
Entre 2020 e 2022, foi desenvolvida uma edição especial do guia PACK Brasil Adulto voltada exclusivamente ao diagnóstico e manejo da COVID-19, incorporando atualizações periódicas diante da rápida produção de novas evidências para o enfrentamento da pandemia de COVID-19.
Em 2022, por meio do Acordo de Cooperação entre a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde (Fiotec) e os U.S. Centers for Disease Control and Prevention (CDC), iniciou-se uma nova parceria com a Knowledge Translation Unit (KTU), através da The Health Foundation, com o objetivo de expandir o programa PACK para outros municípios brasileiros onde há apoio do projeto A Hora é Agora (AHA). Neste âmbito, foi criada também a Unidade de Tradução do Conhecimento (UTC) Brasil, responsável pelo desenvolvimento do programa PACK no Brasil.
“Acredito que os principais benefícios do PACK sejam a praticidade, pelo seu fácil e rápido acesso, e a padronização dos atendimentos. Com ele, todos os profissionais falam a mesma língua, e de uma forma embasada em literatura confiável.” (Daniela Falcão – médica)
Resultados
Em 2016, junto à British Medical Journal (revista de publicação científica do Reino Unido), iniciou-se como proposta um estudo de implementação e uma pesquisa de impacto clínico em Florianópolis, para avaliar o impacto do treinamento das equipes no uso do guia no cuidado de algumas condições clínicas.
Segundo pesquisas realizadas para avaliar a implementação do programa, houve um impacto significativo na melhoria da qualidade da oferta de serviços prestados à população no âmbito da APS, sobretudo no manejo de doenças respiratórias. Além disso, tais pesquisas evidenciaram que os profissionais que receberam os treinamentos aliados com os guias tiveram melhores resultados em seus desfechos de decisões clínicas.
“O guia PACK trouxe mais suporte e segurança para os atendimentos dos profissionais. É uma ferramenta muito atualizada, com uma diversidade de manejo clínicos que trazem mais agilidade nas tomadas de decisões em consultório. Ter os momentos de capacitações do guia com horários protegidos trouxe uma sensação de valorização por parte dos profissionais e, consequentemente, melhorias para a rede.” (Anna Caroline Dourado – enfermeira)
Conclusões
Em síntese, o projeto PACK buscou organizar e promover a tradução das principais evidências clínicas sobre as condições de saúde encontradas com maior frequência na Atenção Primária à Saúde. De acordo com Isadora Ferreira, médica de família e comunidade, uma das principais lições aprendidas ao longo da implementação do projeto é a possibilidade de conseguir localizar e contextualizar as informações junto ao usuário do sistema:
“O PACK se preocupa em atingir as pessoas no contexto onde elas estão. Ele realmente traduz o dia a dia da atenção primária.”
Para Ronaldo Zonta, médico de família e comunidade e coordenador do Departamento de Gestão Clínica da Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis (SC), o PACK é um produto diferente de um guideline, uma vez que ele é localizado para uso em contexto específico da APS e criado a partir da tradução do conhecimento das melhores evidências disponíveis.
Por fim, o coordenador do Departamento de Gestão Clínica salienta que o PACK é um guia voltado para a Atenção Primária, como uma resposta à necessidade da integralidade de atendimento às pessoas que procuram os cuidados:
“A gente tem um gap muito grande, pois temos uma grande produção técnico-científica, mas nem é traduzida para o cuidado com o paciente. Experiências como o PACK mostram um diferencial, algo que nunca encontramos em outros programas de formação e qualificação para atenção primária. Também vimos o quanto o design e a ferramenta são importantes para a tradução do conhecimento e para a usabilidade para a incorporação e a implementação das propostas nas políticas públicas.”
- Guias PACK Brasil Adulto- Ferramentas para profissionais de saúde. Acesse aqui
- Mais informações sobre o Programa PACK: https://knowledgetranslation.co.za/
Pessoas entrevistadas:
Isadora Ferreira – Médica de Família e Comunidade, especializada em Gestão e Preceptoria e atuante no Departamento de Gestão Clínica da Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis (SC). Participa do programa PACK como líder municipal de Treinamento e Implementação.
Ronaldo Zonta – Médico de Família e Comunidade e coordenador do Departamento de Gestão Clínica da Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis (SC) e da Unidade de Tradução do conhecimento vinculada à FIOCRUZ-RIO e o projeto A hora é agora, que coordena a implementação no PACK no Brasil.