Esta História de Mudança relata a criação, atuação e desafios da sustentabilidade do Núcleo de Evidências (NEv) de Piripiri, Piauí_¹. Uma experiência que completa 15 anos, em 2023, com destaque a nível nacional e global por inaugurar o conceito e servir de referência para a consolidação de outros NEvs enquanto unidades a serviço de gestões municipais, buscando atender e personalizar as evidências de acordo às demandas e recursos locais. 

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O início da trajetória

O contexto para o surgimento da iniciativa do núcleo de evidências (NEv) de Piripiri se confunde muito com a chegada ao Brasil da EVIPNet – iniciativa da OMS voltada à capacitação dos países na tradução de conhecimento e no uso de evidências para informar políticas públicas. Em 2007, a rede começou a se desenvolver aos poucos dentro do Ministério de Saúde, sobretudo com o envolvimento de representantes da OMS e da OPAS que atuavam junto ao ministério. No entanto, a discussão para implementar o uso de evidências em dimensões locais ainda era bastante inovadora até mesmo dentro da EVIPNet em outros países, que se conformava por núcleos de ministérios de saúde nacionais.

Assim, o surgimento do primeiro NEv local, no município de Piripiri, começou a se desenhar a partir de uma série de condições favoráveis particulares que reuniu à época. À frente da Secretaria desde 2005, Jorge Barreto, já conseguia implementar uma visão que refletia o foco de sua pesquisa pessoal nos temas da Atenção Primária à Saúde (APS) e, posteriormente, nas Políticas Informadas por Evidências (PIE). Nesse período, Piripiri foi então ganhando destaque por ser um município que evoluiu muito rapidamente no setor da saúde pública, sendo reconhecido por sua inovação, sobretudo em Atenção Primária, que é o cerne da gestão no município. 

A atuação de Jorge Barreto também junto ao movimento da EVIPNet Brasil e como Secretário extraordinário para Ciência e Tecnologia do CONASEMS, criaram uma oportunidade ainda maior para apostar no investimento de implementar o uso de evidências dentro da perspectiva local. 

“Embora o conhecimento seja global, a sua implementação sempre vai ser local. Não tem como você lidar com políticas informadas por evidências sem ingressar no território local, onde as pessoas estão. Mais tarde isso foi reconhecido pela OMS, que inclusive redirecionou a implementação da EVIPNet para permitir que grupos locais fizessem parte.” , ressalta Barreto.

Outras experiências locais também foram significativas para o destaque do município, como a iniciativa de Pagamento por Desempenho com foco na saúde bucal², que foi reconhecida pelo Banco Mundial, sendo a experiência escolhida para representar a região em uma publicação sobre esse modelo. Nesse mesmo período, Piripiri reduziu a mortalidade perinatal de 21 para 7 óbitos por 1000 nascimentos³, sendo reconhecido pela UNICEF e pela OMS. Esse plano foi mediado por evidências, utilizando recursos de tradução do conhecimento⁴.

Com essa série de condições alinhadas, a formação do NEv de Piripiri teve portanto a primazia de ser o primeiro núcleo de evidências local do mundo, tornando-se um referencial para outros núcleos de evidências municipais. No entanto, Jorge destaca a particularidade dessa experiência:

“Eu considero que embora seja uma experiência que teve seu êxito, muito dos requisitos para que o NEV existisse não estão presentes em outros contextos, como a presença de uma gestão que incentive o uso de evidências nas discussões, que tenha recursos para destinar a isso e que dê espaço para a tomada de decisões informada no dia a dia.” 

O NEv de Piripiri ganhou forma, tendo inclusive sede própria, com os profissionais de saúde alocados e iniciando a operação em março de 2010, ainda que “contra a maré”, segundo Barreto. Embora o Ministério da Saúde e a OPAS tenham reconhecido a iniciativa, o foco de atuação maior dessas organizações ocorria a nível nacional, com a atuação em nível local não sendo a prioridade no primeiro momento⁵. 

Fatores relevantes para a atuação do NEv Piripiri

Outro fator positivo e particular para o sucesso do NEv de Piripiri foi a abertura institucional à agenda das evidências. O quadro funcional da Secretaria havia começado a se formar em 2005 e, em apenas três anos houve um aumento de 98% de profissionais concursados, um número bem expressivo e talvez inédito. Assim, a cultura institucional foi sendo estabelecida a partir do ingresso desses novos profissionais, muitos dos quais vinham da Atenção Primária, onde o uso de evidências ficou muito disseminado e bem aceito, como nos casos do pagamento por desempenho e do plano de redução da mortalidade perinatal. Logo, do ponto de vista institucional, isso foi um facilitador para vigorar essa “cultura de mudança”.

Em relação ao escopo de atuação, a ideia de produzir Sínteses de Evidências não era o foco do núcleo. Na visão de Jorge, “As sínteses funcionavam muito como um recurso relativamente acadêmico no Brasil, com impacto limitado na prática, pois muitas vezes não chegavam a quem estava à frente da tomada de decisões.” No caso de Piripiri, o NEv funcionava então no papel de assessoria ao município, apoiando diretamente às prioridades da gestão, integrando a pesquisa através de planos e ações e priorizando estratégias de tradução de conhecimento e disseminação da informação. Um exemplo eram os diálogos deliberativos, que reuniam diversos atores como profissionais de saúde, legisladores, representantes da sociedade civil organizada e formadores de opinião.

Com o passar do tempo, muitos profissionais da saúde de outros estados buscaram trabalhar na cidade, reconhecendo o pioneirismo do Nev e almejando a oportunidade inovadora de aplicar métodos de tradução de conhecimento na Atenção Primária. Além disso, a gestão tinha um papel de liderança horizontal e muito diálogo com os profissionais, proporcionando processos de educação permanente sobre esses métodos e apoio para capacitação pessoal, como no ingresso em programas de mestrado na Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Barreiras e fragilidades institucionais

Com a mudança de gestão em 2013, a agenda do uso de evidências ficou de fora das prioridades da nova liderança. Apesar de todo o cuidado da institucionalização do NEv, via lei e portarias municipais, e em construir uma cultura organizacional forte, o apoio político ao uso de evidências não prevaleceu, impactando na descontinuidade de programas e medidas implementados anteriormente, entre eles o NEv. 

A resistência corporativa também não teve forças para se manter diante do desmantelamento das políticas locais. O corpo profissional, antes em sinergia com a cultura estabelecida, passou a ir se transformando internamente, com a mudança de profissionais e de suas prioridades. Do ponto de vista legislativo da gestão, vieram à tona questões de cunho trabalhista, como por exemplo a exigência por planos de cargos e salários em detrimento a outras legislações e benefícios que já existiam. Todos esses fatores contribuíram para o esvaziamento das ações e medidas postas pelo trabalho da gestão anterior e do auxílio do Nev.

Reconhecimentos e lições aprendidas

Embora o desfecho da trajetória do NEv de Piripiri tenha se dado de forma abrupta devido à alteração de prioridades da gestão, que impactou na sustentabilidade deste trabalho, diversas lições valiosas puderam emergir neste experimento.  Em primeiro lugar, a relevância de se investir na adaptação criteriosa das evidências nos planos municipais, considerando o contexto, a infraestrutura e a cultura locais. O maior legado de Piripiri foi ter acreditado nesse processo de forma pioneira. Hoje, o mundo inteiro tem grupos que atuam em nível local, inclusive como estratégia incentivada pela OMS. Mesmo durante o período em que o apoio à EVIPNet no Brasil não foi uma prioridade governamental, o NEv de Piripiri funcionou como um “motor” da rede, mantendo sua atuação de forma local e conectando-se à rede internacional, através da participação em encontros e eventos nacionais e internacionais.

Em segundo lugar, o relato comprova a importância de se ter uma liderança comprometida na condução de políticas que priorizem o enfrentamento a problemas de saúde locais de forma eficaz e horizontal, com foco no uso de evidências e na tradução do conhecimento.

Por fim, destaca-se também o diferencial de uma cultura organizacional que não apenas reconheça, mas também celebre a utilização de evidências científicas como alicerce para a tomada de decisões, com a participação ativa dos profissionais de saúde nesse processo, tanto na produção quanto na aplicação de evidências científicas. 

Referências bibliográficas:

Jorge Otávio Maia Barreto e Nathan Mendes Souza, “Avançando no uso de políticas e práticas de saúde informadas por evidências: a experiência de Piripiri-Piauí,” Repositório de Projetos de Pesquisa de Acesso Livre, acesso em 7 de outubro de 2023, https://repositorio.ecos.unb.br/items/show/107: link

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1. Piripiri é um município de médio porte do Estado do Piauí, Nordeste do Brasil, com produto interno bruto (PIB) per capita de US$ 1.872, o que representa um valor equivalente a 25% da média nacional e 60% da estadual. Em 2008, o gasto em saúde per capita foi de aproximadamente US$ 160. O sistema público de saúde é hegemônico no contexto local e centrado na atenção primária à saúde, com a cobertura populacional integral da estratégia Saúde da Família, modelo com base comunitária amplamente difundido no Brasil.
2.  ChiY-L, Cashin C. Brazil: incentive program for family health performance improvement (PIMESF) implemented in Piripiri Municipality.The World Bank, 2011. Acesse aqui. 
3.  WORLD HEALTH ORGANIZATION et al. EVIPNet in action: 10 years, 10 stories. World Health Organization, 2016:  link. Selo UNICEF nas edições 2007-2008, 2009-2012: link.
4.  Redução da Mortalidade Perinatal em Piripiri-PI: Uma estratégia de intervenção: link
5.  Evaluation of the Evidence Informed Policy Networks (EVIPNet) August 2010-July 2012: link.